Há muitos exemplos de movimentos cívicos pelo País fora mas o Expresso escolheu os de 3 cidades: Braga, Aveiro e Lisboa. De Braga referem-se dois casos: S. Geraldo Cultural e Salvar a Fábrica Confiança. Aqui fica a reportagem completa, publicada no semanário Expresso, num trabalho da autoria de André Rito.
Nas cidades, os movimentos cívicos são uma arma
Em julho de 2012, a Câmara Municipal de Aveiro (CMA) lançou um projeto para a reconversão do bairro social mais antigo de Portugal. Integrado num plano designado por Parque da Sustentabilidade, o projeto para o Bairro do Alboi — orçamentado em €14 milhões — teve a sua face mais visível na construção de uma estrada e de uma ponte pedonal sobre a ria de Aveiro. O jardim central, onde os moradores do bairro se sentavam nos bancos de repouso enquanto os miúdos se divertiam no parque infantil, foi cortado ao meio por uma artéria destinada ao trânsito automóvel.
Na altura, um grupo de cidadãos organizou uma petição a exigir explicações públicas à CMA sobre a natureza do projeto. “O jardim foi totalmente destruído a favor de uma coisa chamada Parque da Sustentabilidade, destruíram-se dezenas de árvores boas para se construir um espaço público inóspito e sem identidade”, recorda o professor da Universidade de Aveiro José Carlos Mota, de 52 anos, uma boa parte dedicados às questões do urbanismo e do património.
O investigador na área do urbanismo fazia parte do movimento cívico Amigos d’Avenida, que acompanhou o processo durante mais de três anos, com a “realização de eventos de reflexão e organização de tomadas de posição — desde abaixo-assinados à produção de sugestões e recomendações, realização de reuniões com entidades promotoras e financiadoras”. A ideia era envolver os cidadãos na discussão pública de uma zona que temiam ficar “descaracterizada”.
“ALBOI CORTADO AO MEIO? NÃO!”
“O bairro tinha características únicas: a localização junto à ria onde antigamente se colocava o moliço a secar ao sol, a dimensão exígua das casas com os seus corredores estreitos onde se armazenavam as artes de pesca, o jardim central”, conta o professor universitário. Vários moradores aderiram à causa e colocaram nas janelas das casas mensagens onde se lia: “Alboi cortado ao meio? Não!” Mas o projeto acabou mesmo por avançar.
“A intervenção olhou para o bairro como um espaço físico, sem memória e sem vida, procurando responder a um conjunto de problemas físicos, pavimentos e estacionamento, e de necessidades cuja pertinência não ficou justificada”, afirma José Carlos Mota, que publicou uma tese de doutoramento intitulada “Planeamento do Território: Metodologias, Atores e Participação”, na qual incluiu este caso de estudo. “Não houve qualquer ambição no que concerne à requalificação do edificado envolvente nem com a dimensão social do bairro.”
Apesar da luta do movimento cívico para que o projeto fosse alterado, o Parque da Sustentabilidade Aveiro é hoje uma realidade.
Mas nem todos os casos têm este desfecho. O Cidadania Lx, um dos primeiros movimentos cívicos a surgir em Portugal de defesa do património, teve origem na demolição da casa de Almeida Garrett, que deu lugar a um condomínio de luxo, em Campo de Ourique. A demolição efetivou-se e o projeto avançou, mas houve outros que ficaram pelo caminho graças à denúncia e pressão do movimento, fundado por apenas três pessoas. É o caso de um parque de estacionamento subterrâneo no Largo Barão Quintela.
“Temos conseguido algumas vitórias, como a classificação de edifícios, mas a maior parte passa. Sobretudo porque há licenciamentos que não vão sequer a reunião de Câmara. Há muitos projetos de Lisboa que são aprovados por despacho direto do vereador. Quando se sabe da aprovação já as obras estão a começar. Alguns destes casos chegam a tribunal”, conta um dos fundadores do movimento, Paulo Ferrero, de 55 anos, ex-assessor de Helena Roseta na Câmara Municipal de Lisboa (CML).
CIDADANIA TRAVOU ‘MONO’ DO RATO
“Direta ou indiretamente, conseguimos reverter algumas decisões. Poderíamos ter o ‘mono’ do Rato, se não fosse a intervenção do Fórum Cidadania (como se designa a página no Facebook), ou o primeiro terminal de cruzeiros, que era uma barbaridade”, explica Ferrero, considerando que Portugal está numa fase propícia ao surgimento deste tipo de movimentos. “O ativismo do património do passado era associado a uma certa elite cultural. Hoje em dia, estes coletivos têm uma formação mais eclética, já não são uma iniciativa de minorias, mas um ativismo de músculo capaz de travar projetos sem sentido, como o que chegou a ser pensado para o Martim Moniz [que previa a requalificação da praça com contentores].”
O Cidadania Lx é uma das plataformas mais ativas na defesa do património em Portugal. Atua de diversas formas: através de petições mas também de cartas enviadas aos responsáveis políticos e às instituições. Dedica-se sobretudo à defesa do património dos séculos XIX e XX. “São as pessoas que nos mandam alertas, se existe alguma coisa partida no espaço público, atos de vandalismo… Congregamos a informação, publicamos e mandamos para o ministro ou para a CML. Estamos presentes nas discussões públicas e organizamos passeios para visitar o património”, diz Ferrero sobre a plataforma, que hoje tem mais de 200 membros ativos.
A sua forma de atuação também se foi adaptando às mudanças tecnológicas. Há 20 anos, recorda o ativista, “era impensável mobilizar as pessoas”. A cidadania do património fazia-se através do envio de cartas para os jornais, “escritas à mão ou datilografadas por um amigo”. “Para um jornalista pegar num tema era uma carga de trabalhos”, recorda o ex-assessor da CML.
“Se os políticos não tomam a iniciativa de consultar os cidadãos, os movimentos cívicos permitem juntar pessoas preocupadas com determinado assunto — a maioria das vezes com mais qualificações e mais diversificadas do que as dos próprios decisores —, discutir, reunir documentação, estudar, propor outras abordagens e soluções. No século XXI, um autarca moderno tem de saber dar valor e respeitar todo este trabalho cívico”, afirma o jurista Luís Tarroso Gomes, um dos fundadores do Projeto BragaTempo, que evoluiu para diferentes plataformas de defesa do património da cidade minhota.
O jurista e historiador de Braga é um dos rostos da plataforma Salvar a Confiança, um edifício histórico no coração da cidade, o último testemunho da era industrial bracarense, onde durante décadas funcionou a Perfumaria e Saboaria Confiança. Com a deslocalização do negócio, este colosso do século XIX ficou à espera de um destino.
TRANSFORMAÇÃO DA CONFIANÇA EM ESPAÇO CULTURAL
O atual autarca, Ricardo Rio, quis vender o edifício — depois de ter sido um dos principais defensores da sua compra pelo município, em 2011, quando estava na oposição a Mesquita Machado. “A decisão de venda foi tomada sem consultar ninguém, nem a Junta de Freguesia, os conselhos consultivos do município, as associações com sede na freguesia, etc. E a Câmara recusou-se a participar nos debates que os cidadãos promoveram e a reunir-se com eles”, recorda Tarroso Gomes, que promoveu várias iniciativas de defesa do património e esteve na origem da plataforma Salvar a Confiança. A transformação do edifício num espaço cultural tem sido uma das principais batalhas do movimento. O primeiro debate — promovido pelo Projeto BragaTempo — aconteceu em 2004, no Café A Brasileira.
“Após 17 anos, apesar de ter sido adquirido, a ameaça de perda irreversível do último exemplar industrial não está afastada.” Sem um projeto definido, a discussão chegou a São Bento e o futuro é uma incógnita. Desfecho diferente teve o Cinema São Geraldo, encerrado há 20 anos. Propriedade da Igreja, a Arquidiocese de Braga quis vendê-lo em 2016 para construir um hotel. Pressão mediática e forte contestação obrigaram à intervenção da CMB, que arrendou o espaço por 10 anos para o transformar num media arts center. O investimento? €8,5 milhões.