A edição desta semana do jornal Expresso destaca ao longo de duas páginas o potencial da Fábrica Confiança como espaço cultural. O jornal refere:
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Localização estratégica: perto da Universidade do Minho, de um grande centro comercial e do Hospital;
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Vocação cultural e artística: o edifício já teve biblioteca, sala de teatro com máquina de projecção de cinema. Ainda na fase em que a fábrica laborava, o edifício recebeu vários eventos culturais;
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Braga é uma das 11 cidades portuguesas na corrida a Capital Europeia da Cultura, mas cidade não tem nenhum espaço para receber uma exposição de grande dimensão;
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Orçamento anual da Câmara de Braga é de 120 milhões de euros pelo que a venda do edifício por 3,8 milhões, como chegou a propor a autarquia, tem impacto muito reduzido nas contas municipais.
Texto completo (e com links nossos):
Braga quer transformar antiga fábrica em centro de artes
Polémica Edifício histórico em Braga continua à espera de uma segunda vida, mas a solução possível não é consensual
Texto ANDRÉ RITO
A cidade está deserta e alguém escreveu o teu nome em toda a parte, nas casas, nos carros, nas pontes.” A frase, eternizada pela voz de Vítor Espadinha, no disco dos Ornatos Violeta “0 Monstro Precisa de Amigos”, está pintada em letras desalinhadas numa esquina da Rua Nova de Santa Cruz. O monstro aqui é um colosso de meados do século XX, o último testemunho da era industrial bracarense, onde durante décadas funcionou a Saboaria e Perfumaria Confiança. Com a deslocalização da fábrica, em 2005, o imóvel ficou praticamente abandonado e foi adquirido pela câmara em 2012, para ser reabilitado.
Instalado numa zona estratégica da cidade, a algumas centenas de metros da Universidade do Minho, junto ao Hospital de Braga e de um dos principais espaços comerciais da cidade, o imponente edifício da Fábrica Confiança não aparenta ser hoje mais do que um depósito de memórias e de equipamentos sem destino. Pelas enormes janelas viradas para a artéria principal, das quais não sobra um vidro inteiro, é possível ver um parque infantil desmontado, mesas e cadeiras reviradas, e o que restou de uma antiga exposição.
Fundada em 1894 na freguesia de São Vítor, a vocação cultural e artística da Fábrica Confiança estava patente na biblioteca e numa sala de teatro equipada com máquina de projeção de cinema. Os primeiros eventos culturais abertos ao público tiveram lugar quando a fábrica ainda estava a laborar, chegando a realizar-se um concurso de ideias, em 2012, para a ocupação do edifício quase centenário, com vista a “preservar o património e a memória industrial bracarense”, lê-se num documento da Câmara Municipal de Braga.
Ricardo Rio, presidente da Câmara Municipal de Braga, no entanto, que fora um dos maiores defensores da aquisição por parte do município, quando era vereador da oposição, anunciou em outubro passado a intenção de vender o imóvel, que foi travada em tribunal por uma providência cautelar interposta pelo movimento cívico Salvar a Confiança. A mudança de estratégia do executivo relançou uma polémica antiga: afinal que destino a dar a este complexo industrial no coração da cidade?
Braga é um dos 11 municípios portugueses na corrida ao título de Capital Europeia da Cultura, em 2027. Eleita Capital da Cultura do Eixo Atlântico em outubro do ano passado, a cidade continua com “grande carência a nível de infraestruturas culturais”. “Não existe nenhum espaço com dimensão suficiente para receber uma exposição de arte contemporânea. Nem falo das que vão a Serralves. Temos um edifício que, recuperado, servia perfeitamente esse fim, que chegou a abrir portas para eventos culturais, como teatro universitário e exposições”, recorda ao Expresso o advogado e historiador da cidade, Luís Tarroso Gomes, também membro do Salvar a Confiança.
Um dos casos citados por este movimento cívico como bom exemplo de reabilitação do património industrial é o Centquatre Paris, um conjunto de edifícios de arquitetura industrial onde desde 1874 a Câmara local organizava os serviços fúnebres. Em 2003, depois de uma década devoluto, foi transformado num, edifício para eventos culturais, dirigido pelo português José Manuel Gonçalves. Tem diferentes valências: salas de exposição, ateliês, lojas, uma incubadora cultural.
Embora hoje restem ainda alguns equipamentos visíveis do exterior, a Fábrica Confiança chegou a ter consultório médico, cozinha, refeitório, mercearia, creche e até salão de festas. As embalagens tornaram-se a imagem de marca dos sabonetes, vendidos em todo o país e no estrangeiro. O designer Nuno Coelho, autor da tese de doutoramento “O Design de Embalagem em Portugal“, juntou mais de mil rótulos. “São o reflexo da história do próprio país. A Confiança teve desde sempre um particular cuidado na apresentação dos seus produtos”, afirma ao Expresso.
O autor, que acabaria por publicar em 2017 o livro “Uma História de Confiança”, refere-se também à importância do edifício histórico que ocupou as instalações da Rua Nova de Santa Cruz, em 1921. “Trata-se de um notável exemplar da arquitetura industrial do princípio do século XX”, refere a tese, que cita José Lopes Cordeiro, docente da Universidade do Minho e investigador em arqueologia. “É um dos poucos edifícios sobreviventes da época que marcou o início da industrialização da capital do Minho (…). Todos os edifícios das fábricas históricas de Braga, como as chapeleiras, foram demolidos durante a década de 80, sem uma preocupação de registar a sua memória.”
Guerra política
Através do ProjetoBragaTempo, no qual o jurista Tarroso Gomes participou em 2003, foi requerida a classificação da Fábrica Confiança como Bem Cultural ao então IPPAR, que remeteu à Câmara Municipal de Braga um ofício para classificar o edifício de interesse municipal. Quinze anos depois, a autarquia propôs a classificação apenas de três fachadas, levando o movimento cívico a fazer novo pedido de classificação: “Só travar a venda não chega. A abertura do procedimento de classificação tem uma série de medidas preventivas, neste momento qualquer decisão tem de passar pelo Ministério da Cultura. Era preciso que alguém acima da câmara se pronunciasse.”
Ricardo Rio, que alega a falta de verbas para justificar a alienação e a herança socialista das PPP e do Estádio Municipal, diz ao Expresso que a Fábrica Confiança continua a ser uma das suas “prioridades pessoais”, e que a venda é uma garantia de preservação do património “Está em causa a mera passagem da esfera pública para a privada. Deixar que outros o façam a expensas próprias é garantir a reabilitação e encaixar uma verba que será no mínimo de €3,8 milhões.”
“Como se os €4 milhões da venda da Fábrica Confiança chegassem para resolver os problemas do município”, ironiza o vereador do PCP, Carlos Almeida, que numa das últimas reuniões de câmara fez questão de recordar ao líder da Coligação Juntos por Braga as suas próprias palavras: “O projeto de requalificação seria para avançar caso haja ou não verbas comunitárias.”
Para 2019, com um orçamento para gerir de 120 milhões de euros, a Câmara Municipal de Braga deu prioridade a outras obras: a requalificação do edifício multiusos Dr. Francisco Sanches, a renovação do Mercado Municipal, os investimentos na requalificação do Bairro de Santa Tecla e o término da requalificação do Centro Europeu de Juventude/Pousada de Juventude. Quanto ao futuro da Confiança, a Câmara apresentou contestação em Tribunal.
“Chegou-se a pensar em entregar o imóvel à Associação Académica da Universidade do Minho. No nosso caderno de encargos criámos restrições ao seu uso como espaço comercial. Deverá ser para um equipamento de outra natureza, eventualmente uma residência universitária privada, um hotel ou outra valência compatível.”
Do cinema erótico a Sá Carneiro
A memória, preservação e reabilitação do património em Braga tem originado várias discussões públicas sobre o destino de alguns edifícios históricos da cidade. O cinema São Geraldo, por exemplo, encerrado há duas décadas, chegou a estar entre as maiores salas de espetáculo do país, tendo sido inaugurado em 1917 como Salão Recreativo Bracarense, em pleno centro histórico da cidade, nas traseiras do Theatro Circo. Propriedade da igreja católica teve diferentes utilizações, dos espetáculos teatrais e festas, ao cinema erótico e aos comícios políticos de Mário Soares ou de Sá Carneiro.
Até que em 2016 a Arquidiocese de Braga apresentou um projeto para a construção de um hotel e de um centro comercial, que esteve na origem de nova contestação. Descartando responsabilidades por entender que o edifício não tinha “valor patrimonial”, sem fazer “juízos de valor sobre a natureza do projeto promotor do privado”, a autarquia liderada por Ricardo Rio anunciou em setembro de 2018 a requalificação do edifício centenário com um investimento de €8,5 milhões para a criação de um espaço dedicado às artes multimédia. O espaço foi arrendado por 10 anos para desenvolver um projeto na área das media arts, com um valor de €4 milhões.
Ainda sem projeto à vista está o palacete doutor Domingos Afonso, propriedade de Manuel Rodrigues (sócio da Rodrigues & Névoa), que em outubro do ano passado sofreu um incêndio que deixou apenas a fachada erguida. O fogo de grandes proporções chegou a ser investigado pela PJ — ainda sem conclusão já que o local, há muito abandonado, era frequentado por toxicodependentes e sem-abrigo. “0 que ficou acordado foi iniciarmos um diálogo brevemente com o proprietário para debater ideias que façam sentido naquela zona, eventualmente com ligação ao mercado municipal”, diz Rio.
António Pereira Rodrigues, dono do restaurante Mini-Sport, situado em frente ao edifício e um dos mais afamados na cidade, já não se recorda do palácio sem estar abandonado. Mas lembra-se bem do dia em que foi bater à porta dos proprietários — na altura a sociedade Domingos e Névoa — para reclamar o estrago provocado pela queda de uma telha em cima do seu BMW. “Foram impecáveis, pagaram uma capota nova”, conta enquanto exibe um azulejo antigo que sobrou do incêndio. “Está sempre aqui guardado debaixo do balcão.”